A França foi berço ou local de moradia de várias das maiores personalidades da história mundial. E uma das coisas que acho mais legal aqui é que a memória dessas pessoas é conservada em locais que foram importantes para elas. Já falei no blog sobre o apartamento e ateliê de Delacroix , em Paris, e da Maison do Doutor Gachet, em Auvers-sur-Oise. Agora é a vez de Victor Hugo, e vamos visitar um dos apartamentos em que ele morou, na atual Place des Vosges, no Marais.
O imóvel escolhido por ele, o número 6 da então Place Royale, chama-se Hôtel de Rohan-Guéménée. Ele foi construído na mesma época que a praça, em 1605, por Isaac Arnauld, intendente de finanças do Rei. O terreno fazia parte do antigo parc des Tournelles. Poucos anos depois da sua construção, ele é vendido três vezes: em 1612 para o marquês de Lavardin; em 1621 a Pierre Jacquet; e em 1639 para a família de Louis de Rohan, príncipe de Guéménée.
A família fica com a propriedade até 1784, quando resolve vendê-la. Aí ela passa novamente por vários proprietários, até que em 1873 os herdeiros de Péan Saint-Gilles resolvem doá-la para a cidade de Paris. Uma escola é construída no local, que passa por algumas reformas internas.
No começo do século XX, Paul Meurice, jornalista, grande amigo do escritor e um de seus principais divulgadores, doa para a cidade toda a coleção que tinha sobre Victor Hugo. E mais – ele ainda compra várias outras coisas que pertenciam ao escritor e que estavam espalhadas, além de encomendar obras sobre Victor Hugo aos principais artistas da época, como, por exemplo, o busto executado por Rodin.
Ele conta, também, com a ajuda dos netos do escritor, Georges e Jeanne Hugo, que doam vários móveis e objetos, como, por exemplo, todo o mobiliário do quarto onde Victor Hugo morreu, em 1885. Os herdeiros de Juliette Drouet, atriz e amante de Victor Hugo por mais de 50 anos, também doam objetos e móveis com os quais o escritor decorou a casa da amada.
Assim, em 1903, é inaugurada a Maison de Victor Hugo, no mesmo local onde ele viveu por quase 16 anos. É o mais antigo museu literário da França.
Victor Hugo e o apartamento
O escritor já era conhecido quando, em 1832, se muda para o segundo andar do número 6 da então Place Royale. Ele já havia publicado, inclusive, Notre-Dame de Paris (1831). O contrato, que começava a valer em 01 de janeiro de 1833, estabelecia 1500 francos de aluguel anual, que poderia ser quitado em quatro vezes.
Na época, Victor Hugo tinha apenas 30 anos e já era considerado um dos chefes do Romantismo. Então, ali naquele apartamento, onde viveria até 1848 com a mulher, Adèle, e quatro filhos, o escritor recebia as maiores personalidades da época, tais como Théophile Gautier – que também era seu vizinho, pois morava no número 8 da praça -, Delacroix, Alexandre Dumas, o escultor David d’Angers e muitos outros.
É ali também que ele escreve várias de suas obras, como, por exemplo, as peças Lucrèce Borgia e Marie Tudor (1835); publica Les Chants du Crépuscule (1835), Les Voix Intérieures (1837) e Les Rayons et les Ombres (1840).
E os anos no apartamento marcam várias transformações na vida do escritor: em 1841, após várias resistências, ele é eleito para a Academia Francesa, em 1845 torna-se Pair de France (a Chambre des Pairs era uma espécie de Senado), e em 1848 é deputado. Aos poucos, suas opiniões políticas vão mudando e, de monarquista, ele vira republicano.
Mas nem tudo são flores: foi na época do apartamento na Place Royale que a família Hugo viveu um de seus maiores dramas: em setembro de 1943, a filha mais velha de Victor Hugo, Léopoldine, morre afogada no Sena com o marido. Esse drama vai marcar para sempre o escritor, principalmente porque ele não estava com a família na ocasião da morte da filha, de apenas 19 anos. Assim como vários casais da época, Victor e Adèle não primavam pela fidelidade, e, no dia do afogamento, o escritor estava viajando com sua amante, Juliette Drouet, e ficou sabendo da morte pelos jornais.
A família vive na Place Royale até 1848. Nessa época, Paris enfrentava um período turbulento. Em fevereiro, rei Louis-Philippe foge e a II República é proclamada. Mas a instabilidade continua nos meses seguintes. Como deputado, Victor Hugo é um dos encarregados de conter as revoltas. Algum tempo depois, seu apartamento é invadido pelos revoltosos.
Apesar da família não estar lá no momento, o medo é grande. Assim, em junho de 1848, eles se mudam e nunca mais voltam a viver na Place Royale.
A Visita
A Maison de Victor Hugo reúne mais de 700 desenhos feitos pelo escritor, além de milhares de manuscritos, estampas, fotos antigas e modernas, cartazes, roupas, objetos, etc. Há também pinturas e esculturas celebrando o famoso morador e sua família. Como é muita coisa, boa parte do acervo é exposta, em esquema de rodízio, no primeiro andar, que também é destinado a exposições temporárias. E no terceiro há uma biblioteca especializada, que pode ser consultada por pesquisadores.
O apartamento em si fica no segundo andar, no mesmo local onde Victor Hugo viveu. Não é uma reconstituição exata da residência e sim um resumo da vida do artista. As salas são divididas em: Avant l’Exil (antes do exílio), Pendant l’Exil (durante o exílio) e Depuis l’Exil (após o exílio). Essa divisão de sua vida foi feita pelo próprio autor, na obra Actes et Paroles (1876).
Avant l’Exil
1) Antichambre – A configuração desta sala é a mesma da época de Victor Hugo, inclusive o chão de mármore negro e calcário. Este cômodo representa a infância, juventude e os primeiros anos de casado do escritor, ou seja, os anos antes de morar na Place Royale.
Ali encontramos informações sobre os avós e pais de Victor Hugo. Há retratos anônimos dos avós maternos do autor e até referências à casa onde ele passou a infância. Além da certidão de nascimento do escritor, um dos destaques é o quadro do general Hugo, pai do artista, ao lado dos irmãos Louis e François e do filho Abel. Ele foi pintado por Julie Duvidal de Montferrier, esposa de Abel.
2) Salon Rouge (Salão Vermelho) – É o único cômodo que mostra a vida da família na época em que viveu no apartamento. Na configuração original do imóvel, o espaço era dividido em duas salas. O bom gosto na decoração chamava atenção dos ilustres frequentadores da residência, que vivia cheia. Foi Victor Hugo em pessoa que decorou o apartamento. Ele adorava ir a feiras e lojas de antiguidades, e comprar objetos e móveis que não combinavam entre si, para o desespero de Adèle. Mas, o resultado era um sucesso.
Nesta sala há também obras de Hugo realizadas pelos amigos do escritor, que eram visitas frequentes no apartamento. Um exemplo é o busto realizado por David d’Angers. Há também um retrato de Adèle Hugo, realizado por Boulanger, e outro de Léopoldine (a filha que morreu afogada), feito por Auguste de Chatillon , entre outras obras.
Pendant l’Exil
Em 1851, após denunciar o golpe de Estado de Napoleão III, Victor Hugo parte para o exílio. Serão 19 anos vivendo fora, primeiro em Bruxelas, depois na ilha de Jersey e, por fim, em Guernesey (estas duas fazem parte das Ilhas Anglo-Normandas, dependentes da Coroa Inglesa). A família consegue partir graças a documentos falsos arranjados por Juliette Drouet. Alguns dias depois, ela se junta ao amado, trazendo na mala os manuscritos dele, entre eles Les Misérables quase terminado.
1) Salon Chinois (Salão Chinês) – Em Guernesey, com os ganhos de sua obra Contemplations, Victor Hugo compra uma casa em 1856, situada no número 38 da rua de Hauteville. Ele chama a residência de Hauteville House. Algum tempo depois, Juliette se muda a poucos metros dali, na mesma rua, numa casa em que o escritor havia vivido alguns anos antes e que passa a se chamar Hauteville Fairy.
Para decorar a casa da amante, Victor Hugo dá asas à imaginação. Ele percorre novamente os mercados de antiguidades e compra toda sorte de objetos, inclusive pedaços de caixas, retalhos, tapetes, porcelanas quebradas. Ele desenhava as criações e mandava executá-las. Isso quando não fazia ele mesmo as peças.
Nesse Salon Chinois, reconstituído integralmente aqui – na antiga sala de estar do apartamento na Place Royale -, o escritor mostra sua fascinação pelo oriente, muito comum nos artistas da época. Mas é uma idealização recheada de fantasia. Como o desenho do chinês Shu Zan, uma brincadeira com o nome Suzanna, a cozinheira de Juliette.
2) Salle à Manger de Hauteville Fairy (Sala de jantar de Hauteville Fairy) – Aqui também a decoração é de Victor Hugo para a casa da amada. Desta vez a inspiração é medieval, paixão já revelada no romance Notre-Dame de Paris.
O mobiliário é Neogótico: o autor transforma, por exemplo, cofres antigos em bufê, e portas monumentais em tampo de mesa. O gosto do medieval também era moda no século XIX. Esse cômodo, onde a sala de jantar de Juliette é reconstituída, era um corredor e dois quartos na época da Place Royale.
3) Cabinet de Travail de Victor Hugo (gabinete de trabalho)- Nesta sala são apresentadas as principais fotografias feitas por Charles Victor, Auguste Vacquerie e Victor Hugo, no começo do exílio nas Ilhas Anglo-Normandas. Há também várias reportagens realizadas em Hauteville House, além de desenhos de Victor Hugo durante o mesmo período. Mas, apesar do nome, há obras de Adèle Hugo – assim como em outras salas -, realizadas antes do exílio. Na época da Place Royale, esta sala fazia parte do quarto de Léopoldine.
Depuis l’Exil
Victor Hugo volta para Paris em 1870, quando Napoleão III é destituído e a França perde a guerra com a Prússia. Ele é recebido como herói e pede “calma e união para salvar a República e a Pátria”.
1) Salon de la rue de Clichy (Salão da rua de Clichy) – Em 1874, Victor Hugo se muda para o número 21 da rue de Clichy. Nessa época, mais dois de seus filhos já estão mortos: Charles, em 1871, e François-Victor, em 1873. Adèle já havia morrido em 1868. Assim, Alice, viúva de Charles, se muda para outro andar do mesmo imóvel junto com os filhos Georges e Jeanne, dos quais o avô cuida da educação. Ele vai mesmo escrever uma obra sobre o assunto: L’art d’être grand-père (1877).
Assim como o antigo endereço da Place Royal, o apartamento de Clichy também recebe os grandes da época, principalmente escritores e políticos. Nesta reconstituição, está exposto o busto realizado por Rodin, além de manuscritos de Victor Hugo e da obra de Shakespeare traduzida por François-Victor Hugo (embora outras obras do pai e traduções do filho também estejam presentes nas outras salas). O cômodo onde o Salão está reconstituído era o Gabinete de Trabalho na época da Place Royale.
2) La Chambre de l’Avenue d’Eylau – Em 1878, Victor Hugo se muda para o 130 avenue d’Eylau (hoje Avenue Victor Hugo). É a última residência, já que ali morreria em 22 de maio de 1885. Neste cômodo, que também era o quarto do escritor na época da Place Royale, está reconstituído o quarto da avenue d’Eylau, com a decoração e a cama onde Victor Hugo morreu.
Todos os móveis do quarto, assim como os da sala anterior, foram doados por Georges e Jeanne Hugo, em 1903, durante a montagem do museu. Georges descreve o quarto em seu livro de memórias, Mon Grand Père, publicado em 1902. Um dos destaques desta sala é a mesa de trabalho onde várias obras-primas foram escritas.
Visitar o apartamento de Victor Hugo é mergulhar na intimidade do escritor e descobrir muita coisa não somente sobre ele, mas também de toda família. É também uma viagem no tempo e um meio de conhecer a sociedade em que ele viveu.
Maison de Victor Hugo
6 Place des Vosges
75004 Paris
Metrô: Bastille – linhas 1, 5 e 8
Saint-Paul – linha 1
Chemin Vert – linha 8
Horários: de terça a domingo, das 10h às 18h.
Gratuito para o acervo permanente
As exposições temporárias são pagas
Tags: 4e arrondissement, Arte & Museus, escritores, França, história, literatura, livros, marais, museu, paris, victor hugo
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