Ele era apaixonado por arte: pintor e gravurista amador, também foi um dos maiores colecionadores do século XIX. Você, com certeza, conhece o doutor Gachet. Não? Então, dá uma olhada na obra abaixo.
Paul Ferdinand Gachet ficou mais conhecido como o amigo e médico de Van Gogh. Mas sua participação no movimento Impressionista foi bem maior e a sua casa é testemunha disso.
Nascido em 1828, desde cedo começou a fazer curso de desenho. Foi nessa época que nasceu a amizade com Amand Gautier (1825-1894), um dos pintores do Realismo francês. Mas Gachet tinha outra paixão: a Medicina, que começou a cursar em Paris e terminou em Montpellier. Seu interesse era voltado às doenças mentais. Ele costumava fazer desenhos dos doentes em atitudes típicas de demência para poder estudá-los melhor.
É no sul da França que ele conhece vários artistas e colecionadores de arte, como Paul Cézanne (1839-1906), que ele encontra em Aix-en-Provence. De volta a Paris, em 1859, abre o primeiro consultório. É nessa época também que começa a participar da boemia de Montmartre, onde conhece, entre outros artistas, Camille Pissarro (1830-1903).
Essa amizade vai mudar a vida do doutor. Casado desde 1868, ele procurava um lugar, não muito longe de Paris, onde pudesse tratar da tuberculose da esposa. Pissarro, que já morava em Pontoise, uma cidade da região parisiense, lhe aconselha a comprar uma casa em Auvers-sur-Oise, ali perto.
Auvers já era bem frequentada pelos pintores impressionistas. Situada na margem direita do rio Oise, aos pés de uma falésia, oferece paisagens lindas e é um lugar calmo, ideal para os artistas da época. Em visita a um amigo, o doutor Gachet já tinha se encantado pela cidade. Além disso, ficava a apenas uma hora de Paris de trem, o que não atrapalharia seu trabalho como médico.
Faltava só escolher a morada. E ele a encontra, em 9 de abril de 1872. O local era sede de uma antiga escola para meninas e possuía um belo jardim, que abrigava uma antiga gruta, parte da pedreira de exploração de calcário, desativada. O minério era usado para construção.
O doutor Gachet não consegue curar a esposa: ela morre em 1875. Mas ele faz da residência um verdadeiro ponto de encontro de artistas. As grutas se tornam o anexo da casa: cave e até o ateliê do doutor. Ele compra, também, uma prensa para fazer as gravuras, uma de suas paixões.
Ali são realizadas divertidas reuniões de artistas: encenavam-se até peças de teatro entre amigos. Anfitrião dedicado, Gachet convidava sempre os impressionistas para pintar na casa (o jardim foi inspiração para vários deles) ou fazer gravuras em sua prensa. Foi ali que nasceram as gravuras de Armand Guillaumin (1841-1972), Pissarro e até de Cézanne (que não gostava muito da técnica).
Esse ambiente artístico impulsiona o médico a voltar para a pintura e para o desenho. Ele assina com o pseudônimo de Paul van Ryssel (que significa Paul de Lille). Cézanne o ajuda a fazer modificações no ateliê para melhorar a luminosidade do lugar. Mais tarde, em 1891, ele participaria do Salão dos Independentes com obras assinadas com seu nome verdadeiro.
Gachet era tão apaixonado por arte que não hesitava em aceitar uma obra ou uma entrada de teatro como pagamento de suas consultas. Assim, ele foi formando uma grande coleção de quadros, estampas e gravuras que hoje valem milhões e estão em diversos museus franceses.
A chegada de Van Gogh
Outra reviravolta na vida do médico aconteceria com a chegada de Van Gogh (1853-1890). Internado em um asilo em Saint-Paul-de-Mausole, no sul da França, o pintor holandês pressionava seu irmão, Theo, a encontrar um lugar perto de Paris onde ele pudesse alugar um quarto e continuar a pintar. Theo entra em contato com Pissarro, que lhe sugere falar com o doutor Gachet.
Acostumado a lidar com doenças mentais e artista amador, Gachet seria a pessoa ideal para cuidar de Van Gogh. Assim, o médico aceita a missão e em 20 de maio de 1890, o pintor chega a Auvers.
Nascia, assim, uma linda amizade. Van Gogh mesmo fala dela em várias cartas para Theo. O doutor o aconselha a pintar sem descanso, pois a arte era a cura para vários males. E o artista segue o conselho: durante 70 dias, Van Gogh pinta mais de 70 telas em Auvers, muitas delas realizadas na casa de Gachet. Mademoiselle Gachet au piano é um exemplo.
Aliás, há um boato de que ele e a jovem, filha do médico, tenham tido um romance. Mas as cartas para Theo desmentem o rumor. Nelas, Marguerite Gachet é citada apenas duas vezes, de maneira impessoal, apenas para falar dos quadros para os quais ela posou. Porém, nada garante que a moça, que viveu solteira a vida toda, não tenha sido apaixonada pelo pintor.
A amizade com a família Gachet continua. É na casa deles que Van Gogh almoça todos os domingos e, às vezes, durante a semana também, enquanto pinta seus quadros. É ali que ele realiza, inclusive, os dois retratos do doutor Gachet. Um deles, Portrait du Dr Gachet avec branche de digitale, foi vendido em leilão em 1990, por 82,5 milhões de dólares, sendo por muitos anos o quadro mais caro do mundo. Os livros amarelos que aparecem na obra são emprestados por Van Gogh. Os dois falavam sempre de literatura e emprestavam seus livros.
Mas a euforia acaba e Van Gogh mergulha de novo na depressão. No dia 27 de julho em 1890, ele tenta se matar com um tiro no peito. Gravemente ferido, é levado para a pensão onde morava. O doutor Gachet é chamado, mas nada pode fazer e o artista morre dois dias depois.
Fortemente abalado, o médico se atribui uma missão: fazer a biografia mais completa sobre Van Gogh, usando para isso as obras de sua coleção. Porém, em 1909, morre sem realizar o projeto.
Então, a casa é herdada por Marguerite e Paul Gachet, os filhos do médico. Paul é também pintor e usa o pseudônimo de Louis Van Ryssel. Durante 50 anos, ele organiza e cataloga a extensa coleção do pai, que é publicada em seis volumes. Ele também publica livros sobre os impressionistas e tenta retomar o projeto do doutor Gachet – a biografia de Van Gogh – mas esta sem sucesso.
Durante a Segunda Guerra, Paul Filho consegue salvar a coleção de arte do pai escondendo-a nas grutas, as do jardim. Assim, ela permanece intacta e não é confiscada pelos nazistas. Em 1949, 1951 e 1954, Paul Gachet Filho doa várias obras-primas ao Estado francês. Assim, nove Van Goghs, oito Cézannes, seis Guillaumins, um Monet, três Pissarros e um Renoir, entre outras telas, gravuras e estampas, entram no museu do Louvre. Hoje, podem ser vistas no museu D’Orsay.
Em 1962, Paul Gachet, o filho, morre. Segundo sua vontade, a casa e os objetos são vendidos em leilão. Os novos compradores conservam a casa, que, em 1996, é comprada pelo Conselho Geral do Val d’Oise. Ela é reformada, e alguns móveis, dispersos, são recuperados. Em 2003, em 30 de março, na ocasião do 150º aniversário de Van Gogh, ela é aberta ao público.
A visita
Como a maioria dos móveis e objetos foi vendida em leilão após a morte de Paul Gachet Filho, em 1962, a casa é pouco mobiliada. Mas a atmosfera é bem intimista e proporciona uma verdadeira viagem aos tempos “impressionistas”. É impossível não ser tocado pela personalidade sensível do Doutor Gachet, que transparece em todos os cômodos. Podem ser visitados o primeiro e o segundo andar. É uma visita rápida, a não ser que você seja apaixonado pelo tema, como eu.
O Jardim
É lindo! Primeiro pelas flores e árvores em si. Segundo, porque ele tem uma vista linda da cidade. Sem contar que foi palco de muitas obras-primas. No jardim, encontramos algumas curiosidades, como, por exemplo, a mesa onde a família Gachet e Van Gogh faziam suas refeições. Aliás, foi nela que o doutor posou para o artista.
Também podemos ver a gruta troglodita, ou seja, a gruta escavada na antiga pedreira, de onde era extraído o calcário para diversas construções. Esse tipo de gruta também era, e é ainda, usada como moradia em muitas regiões da França.
Entre as plantas do jardim, há muitas espécies usadas em tratamentos homeopáticos. Além de clínico geral e psiquiatra, o doutor Gachet foi um dos pioneiros da Homeopatia.
A sala
Tem poucos móveis, como por exemplo, uma cadeira da época do doutor e um piano. Não só na sala, mas em vários cômodos da casa, há trechos de cartas de Van Gogh. Também são usados para exposições temporárias, tendo sempre como tema a gravura. No dia em que fui, o assunto era uma técnica japonesa de gravura de peixes.
Sala Dois
Esse cômodo não tem nome, então, vou chamá-lo de sala dois. Nela, encontramos um dos cavaletes do doutor Gachet e alguns documentos. O resto é ocupado pelas obras da exposição temporária, o que é bem interessante também.
Cozinha
É um cômodo bem pequeno, mas achei bem legal. É a reconstituição de uma cozinha da época do Doutor Gachet: o fogão, a pia perto da janela, as fotos da família na parede… Tudo isso dá um ar até meio nostálgico à peça.
O pequeno hall
Subindo pelas escadas de madeira, nos deparamos com uma espécie de hall, que dá para o que eram dois quartos da casa. É nele que está a prensa que o doutor usava para fazer as gravuras, não só dele como de Pissarro, Guillaumin, Cézanne e até a única da carreira de Van Gogh – L’homme à la Pipe, le Portrait du Docteur Gachet. A prensa foi vendida por Paul Filho em 1943, mas, na reabertura da casa, em 2003, o comprador do objeto emprestou-o ao museu.
Entrando pela porta à direita, estamos em um dos quartos. Não há móveis: além dos trechos das cartas de Van Gogh, encontramos reproduções de algumas obras do artista que foram realizadas ali em Auvers-sur-Oise. E, como nas salas do andar de baixo, gravuras da exposição temporária.
Já à esquerda do hall, outro quarto. Logo na entrada, vemos objetos usados na época do doutor Gachet, como os recipientes de remédios. Há também várias reproduções de gravuras que faziam parte da coleção do médico, como, por exemplo, Docteur Paul Gachet en buste de Cézanne (cujo original está no Louvre).
Em um anexo deste cômodo, estão os desenhos preparatórios de várias gravuras que foram realizadas ali na casa por diversos artistas. E, abrindo as gavetas, mais gravuras.
A visita à casa do Doutor Gachet é simples, mas emocionante. E o mais legal ainda é que o pessoal da recepção é simplesmente apaixonado pelo que faz. Como não tinha quase ninguém, a senhora, que estava na bilheteria, nos acompanhou em boa parte da visita, dando uma verdadeira aula de arte. E sem cobrar nada. Para quem vem a Paris e tem uns dias a mais, Auvers-sur-Oise é um lugar que recomendo. Ainda vou escrever mais sobre a cidade.
Maison du docteur Gachet
78, rue du Docteur-Gachet — Auvers-sur-Oise
Horários:de 03 de abril a 31 de outubro, de quarta a domingo, das 10h30 às 18h00
Para ir a Auvers-sur-Oise
Trem: durante a temporada, de abril a outubro, aos sábados, domingos e feriados há trens diretos para Auvers-Sur-Oise saindo da Gare du Nord. A viagem dura 1h20.
Durante a semana ou fora da temporada: Da estação Gare du Nord, pegar o trem em direção a Pontoise e em Pontoise pegar o trem em direção a Persan Beaumont e descer em Auvers-sur-Oise. Tempo de trajeto 1h20
Mais informações no site da SNCF/Transilien
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